O renomado especialista em ensaios clínicos e farmacoepidemiologia, Dr. Stephen Evans, aborda a questão crítica do viés de publicação na pesquisa médica. Ele detalha por que 60% dos resultados de ensaios clínicos não são divulgados em tempo hábil e discute a preferência sistêmica por publicar apenas achados extremamente positivos ou negativos. O Dr. Evans destaca como o registro de ensaios contribui, mas não resolve completamente o problema da manipulação de dados. A conversa enfatiza a obrigação ética de relatar todos os resultados para garantir a segurança do paciente e a integridade científica.
Compreendendo o Viés de Publicação em Ensaios Clínicos e os Resultados Não Divulgados
Navegar para a Seção
- A Dimensão do Problema do Viés de Publicação
- Obrigação Ética na Divulgação de Ensaios Clínicos
- Registro de Ensaios como Solução Parcial
- Influência da Mídia na Disseminação de Resultados
- Riscos de Manipulação de Dados e Seleção Tendenciosa
- Transcrição Completa
A Dimensão do Problema do Viés de Publicação
O Dr. Stephen Evans, MD, inicia sua discussão com o Dr. Anton Titov, MD, apresentando um dado alarmante: apenas 40% dos resultados de ensaios clínicos são relatados dentro do prazo legalmente exigido. Além disso, cerca de 30% dos resultados nunca chegam ao conhecimento público. Essa lacuna compromete significativamente a base de evidências médicas disponíveis para médicos e pesquisadores.
Conhecido como viés de publicação, esse problema faz com que a literatura científica não reflita integralmente os efeitos de um tratamento. A questão vai muito além das terapias para COVID-19, afetando todas as áreas da medicina, incluindo tratamentos farmacológicos e não farmacológicos.
Obrigação Ética na Divulgação de Ensaios Clínicos
O Dr. Stephen Evans, MD, ressalta o dever ético fundamental para com o público e os participantes dos estudos. Pacientes que se voluntariam para ensaios clínicos assumem riscos em benefício de futuros pacientes e do avanço científico. Existe, portanto, a obrigação de analisar e divulgar adequadamente os resultados após a conclusão do estudo.
A não publicação constitui uma quebra de confiança, desvalorizando a contribuição dos participantes e podendo levar a tratamentos baseados em uma compreensão incompleta — e, portanto, imprecisa — dos riscos e benefícios. O Dr. Anton Titov, MD, destaca a extrema relevância desse tema na pesquisa médica contemporânea.
Registro de Ensaios como Solução Parcial
Uma das principais estratégias para combater o viés de publicação é o registro prévio de ensaios. O Dr. Stephen Evans, MD, explica que registrar ensaios randomizados antes de sua realização é fundamental. Essa medida cria um registro público da existência do estudo e de seus desfechos planejados, dificultando que patrocinadores ou pesquisadores ignorem resultados negativos ou neutros.
O registro permite que órgãos reguladores e outros pesquisadores cobrem a divulgação dos resultados. Apesar de representar um avanço importante em transparência, o Dr. Evans observa que o sistema não é infalível, pois investigadores ainda podem contornar o espírito da exigência, mesmo com o ensaio registrado.
Influência da Mídia na Disseminação de Resultados
Em sua conversa, o Dr. Stephen Evans, MD, e o Dr. Anton Titov, MD, abordam o papel influente da mídia. O Dr. Evans observa que todos, incluindo editores de revistas, “gostam de manchetes”. A publicação tende a privilegiar o que ele classifica como “notícias muito boas ou muito ruins”.
Resultados extremamente positivos ou relatos de efeitos adversos graves são considerados dignos de destaque. Já os resultados neutros ou inconclusivos — como um estudo que comprova a ineficácia de um medicamento como a hidroxicloroquina — muitas vezes despertam menos interesse. Essa dinâmica midiática influencia quais estudos são publicados e ganham visibilidade, distorcendo a percepção das evidências.
Riscos de Manipulação de Dados e Seleção Tendenciosa
Mesmo com o registro de ensaios, persiste o risco de manipulação de dados. O Dr. Stephen Evans, MD, descreve como pesquisadores podem “selecionar tendenciosamente” os resultados mais chamativos, mesmo que não correspondam aos desfechos primários predefinidos. Ele recorre a um adágio conhecido na área: os pesquisadores podem “torturar os dados até que confessem”.
Estatisticamente, a variação nos resultados permite que quase sempre se encontre algo interessante ao se vasculhar os dados. Essa prática leva à publicação de resultados extremos — sejam muito positivos ou muito negativos —, enquanto conclusões mais nuances podem permanecer ocultas. No fim, isso corrompe a base de evidências que orienta a prática clínica.
Transcrição Completa
Dr. Anton Titov, MD: Vamos discutir a publicação e a disseminação dos resultados de ensaios clínicos em geral. A indústria farmacêutica é uma das mais lucrativas. No entanto, apenas 40% dos resultados de ensaios clínicos são relatados dentro do prazo legal, e 30% nunca são divulgados.
Não existe uma obrigação perante o público e os pacientes que participaram dos ensaios de analisar e relatar adequadamente os resultados após a conclusão do estudo? Por que tantos resultados não chegam ao conhecimento público?
Dr. Stephen Evans, MD: Essa é uma questão muito importante. Ela não se restringe à COVID-19; aplica-se a todos os tipos de tratamento, inclusive os não medicamentosos. Temos feito grandes esforços para prevenir esse viés — o chamado viés de publicação —, incentivando o registro prévio de ensaios randomizados.
Assim, pelo menos é possível cobrar dos responsáveis pelo registro a divulgação das respostas. O problema é que todos gostamos de manchetes. Todos gostamos de boas notícias. A menos que você seja um jornalista ou alguém focado em efeitos adversos — aí, más notícias são mais atraentes.
Por isso, a publicação tende a privilegiar notícias muito boas ou muito ruins. Notícias neutras não despertam tanto interesse. Não é o que os editores preferem; não rendem manchetes impactantes.
A notícia de que a hidroxicloroquina não funciona, em geral, não é tão interessante, enquanto a sugestão de que ela funciona atrai mais atenção. Claro, devido à grande preocupação atual, mesmo um estudo que mostra ineficácia provavelmente será publicado. Mas o problema persiste.
O viés de publicação é parcialmente combatido por meio desses registros. Mesmo assim, ainda é possível manipular resultados e selecionar tendenciosamente os mais favoráveis, mesmo quando um ensaio foi registrado com um desfecho específico em mente.
Isso não é muito interessante. Acontece que, ainda assim, eles conseguem uma manchete com outro desfecho mais chamativo. Se você é estatístico, sabe que a variação nos resultados é um problema real.
Quase sempre é possível encontrar algo interessante nos dados. Você vai atrás desses resultados. Ou, como já disseram, você “tortura os dados até que confessem”.
O problema é a tendência de valorizar resultados extremos, sejam muito bons ou muito ruins. Vemos isso nas manchetes: boas ou más notícias, se dramatizadas, vendem jornais.
Resultados intermediários e neutros despertam menos interesse na mídia. No entanto, a ciência está justamente interessada nesses resultados — aqueles que não mostram efeitos significativos.
Para ter uma visão adequada do conjunto de evidências, precisamos ter acesso a tudo. O registro de ensaios avança muito nesse sentido. Mas mesmo assim, alguns pesquisadores vão alterar ou selecionar tendenciosamente seus resultados para destacar algo interessante.
Por “interessante”, pode-se entender muito bom ou muito ruim. Efeitos adversos, por exemplo, são considerados interessantes. Vemos isso em várias áreas da medicina: os resultados publicados tendem a estar em um extremo ou outro, e a verdade mais equilibrada pode ficar de fora.