Compreendendo a Sífilis Secundária: Quando uma Infecção Comum se Manifesta como Artrite e Lesões Cutâneas.

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Este caso envolve um homem de 46 anos que desenvolveu artrite persistente e erupção cutânea generalizada após um quadro leve de COVID-19. Após avaliação detalhada no Massachusetts General Hospital, os médicos concluíram que seus sintomas eram decorrentes de sífilis secundária, uma infecção sexualmente transmissível que pode imitar doenças autoimunes. O diagnóstico foi confirmado por exames sanguíneos específicos, que revelaram altos níveis de anticorpos (titulação de RPR de 1:256). O tratamento com penicilina resultou na resolução completa dos sintomas. Este caso ilustra como a sífilis pode se manifestar com sintomas variados, semelhantes a outras condições, reforçando a importância de uma investigação clínica abrangente.

Compreendendo a Sífilis Secundária: Quando uma Infecção Comum se Manifesta como Artrite e Lesões Cutâneas

Sumário

Contexto: Por Que Este Caso é Importante

Este caso é relevante por ilustrar como a sífilis, uma infecção sexualmente transmissível que registrou aumento de 74% nos Estados Unidos entre 2017 e 2021, pode se manifestar com sintomas que imitam doenças autoimunes, como artrite reumatoide ou lúpus. Muitas vezes, pacientes e médicos não consideram a sífilis ao avaliar dores articulares e erupções cutâneas, o que pode atrasar o diagnóstico e o tratamento. O caso também demonstra como infecções podem desencadear respostas inflamatórias que persistem mesmo após a resolução da infecção inicial.

A sífilis secundária é particularmente desafiadora de diagnosticar, pois pode afetar múltiplos sistemas do corpo com sintomas variados. Compreender essas manifestações ajuda os pacientes a identificar quando podem precisar de testes específicos e auxilia os profissionais de saúde a considerar causas infecciosas junto com condições autoimunes.

Apresentação do Caso: A História do Paciente

Um homem de 46 anos foi atendido no Massachusetts General Hospital com artrite e erupção cutânea que se desenvolveram ao longo de vários meses. Os sintomas começaram cerca de quatro meses após um caso leve de COVID-19, contraído durante férias na América Central e no Caribe. Os sintomas da COVID-19 desapareceram em cinco dias, mas uma semana depois, ele desenvolveu dor e inchaço nos punhos.

O paciente apresentava rigidez matinal em ambos os punhos, que dificultava fechar as mãos, embora a rigidez melhorasse com atividade e banhos quentes. Ele também notou instabilidade nos tornozelos ao final do dia. Juntamente com os sintomas articulares, desenvolveu uma erupção cutânea generalizada no tórax, costas e pernas, levemente pruriginosa à noite, mas não dolorosa.

Sintomas adicionais incluíam queda de cabelo em placas (alopecia), perda de peso estimada em 8 kg, crostas nasais com sangramento ocasional e uma úlcera no canto da boca. Ele teve episódios de tontura ao se levantar, o que motivou sua ida ao pronto-socorro, onde foi constatada frequência cardíaca elevada (109 batimentos por minuto), necessitando de hidratação intravenosa.

Sintomas Detalhados e Achados do Exame Físico

No exame, os médicos identificaram vários sinais preocupantes:

  • Sinais vitais: Pressão arterial elevada (156/90 mm Hg) e frequência cardíaca acelerada (105 batimentos por minuto)
  • Achados cutâneos: Erupção macular hiperpigmentada com descamação no tronco, costas e pernas, estendendo-se até o dorso dos pés
  • Envolvimento articular: Inchaço, calor e dor à palpação em punhos, tornozelos e várias articulações dos dedos
  • Outros achados: Queda de cabelo em placas por todo o couro cabeludo, crostas nas narinas e úlcera no canto esquerdo da boca

Exames laboratoriais revelaram várias anormalidades:

  • Velocidade de hemossedimentação (VHS) muito elevada (104 mm/hora, valor de referência 0-14), indicando inflamação significativa
  • Nível elevado de d-dímero (990 ng/mL, normal <500), sugerindo possível inflamação ou ativação da coagulação
  • Fosfatase alcalina levemente elevada (157 U/L, normal 45-115), uma enzima hepática
  • Hemograma completo, função renal e outras enzimas hepáticas normais

Estudos de imagem, incluindo tomografia computadorizada de tórax, não mostraram evidências de embolia pulmonar, nódulos pulmonares ou linfonodos aumentados. O eletrocardiograma mostrou apenas taquicardia sinusal (frequência cardíaca acelerada).

Diagnóstico Diferencial: O Que Mais Poderia Ser?

A equipe médica considerou vários diagnósticos possíveis antes de chegar ao correto. Eles avaliaram sistematicamente diferentes categorias de doenças:

Doenças Autoimunes: Os médicos consideraram várias condições autoimunes, mas encontraram inconsistências:

  • Artrite psoriásica era improvável, pois a erupção não se assemelhava a placas típicas de psoríase
  • Lúpus eritematoso sistêmico (LES) foi considerado, mas o padrão da erupção e a localização da úlcera oral não eram típicos
  • Dermatomiosite era improvável, pois a erupção não apresentava padrões característicos, como o sinal do xale ou pápulas de Gottron
  • Síndrome VEXAS foi considerada, mas descartada devido à ausência de anemia macrocítica

Outras Condições Inflamatórias:

  • A sarcoidose pode causar sintomas articulares e cutâneos semelhantes, mas o paciente não apresentava envolvimento pulmonar típico ou lesões cutâneas específicas
  • Várias condições de vasculite foram consideradas, mas a erupção não era consistente com esses diagnósticos

Doenças Infecciosas: Várias infecções foram avaliadas:

  • Artrite reativa da tuberculose (doença de Poncet) foi considerada, mas o paciente não tinha sintomas respiratórios ou erupção tuberculoide típica
  • Alfavírus artritogênicos (como Chikungunya) eram possíveis dada a história de viagem, mas a erupção persistente não era típica
  • Parvovírus B19 pode causar artrite e erupção semelhantes, mas os sintomas geralmente desaparecem em 6 semanas, não persistem por 14+ semanas
  • A sífilis emergiu como o diagnóstico mais provável, pois poderia explicar todos os sintomas: o padrão específico da erupção, alopecia em placas, lesões orais e nasais, e artrite inflamatória

Testes Diagnósticos e Resultados

O processo diagnóstico envolveu testes sanguíneos específicos para sífilis. Os médicos usaram uma abordagem de dois testes para confirmar o diagnóstico:

Primeiro, realizaram um teste de anticorpos treponêmicos, que detecta anticorpos específicos para a bactéria da sífilis (Treponema pallidum). Este teste foi reativo (positivo).

Em seguida, confirmaram com um teste de reagina plasmática rápida (RPR), que mede níveis de anticorpos correlacionados com a atividade da doença. O teste RPR foi fortemente positivo, com um título de 1:256, indicando infecção ativa.

A combinação desses resultados com a apresentação clínica confirmou o diagnóstico de sífilis secundária. O alto título de RPR indicou doença ativa, requerendo tratamento.

Diagnóstico Final: Sífilis Secundária

O paciente foi diagnosticado com sífilis secundária, um estágio da infecção sífilítica que ocorre semanas a meses após a exposição inicial. A sífilis secundária pode se manifestar com sintomas diversos, incluindo:

  • Erupção cutânea (frequentemente no tronco, braços e pernas, às vezes envolvendo palmas e plantas)
  • Queda de cabelo em placas com aparência "tipo traça"
  • Úlceras orais e crostas nasais
  • Inflamação e dor articular
  • Sintomas gerais como febre, perda de peso e fadiga

Neste caso, a infecção provavelmente ocorreu através de contato sexual com um novo parceiro aproximadamente cinco meses antes do aparecimento dos sintomas. O histórico do paciente de ser sexualmente ativo com homens o colocou em uma categoria de maior risco, já que as taxas de sífilis têm aumentado particularmente entre homens que fazem sexo com homens.

O tempo dos sintomas após a COVID-19 foi provavelmente coincidência e não relacionado, pois a COVID-19 não é conhecida por causar artrite inflamatória crônica.

Tratamento e Manejo

A sífilis é tratada com antibióticos, especificamente penicilina. O tratamento padrão para sífilis secundária é:

  • Uma única injeção intramuscular de penicilina G benzatina (2,4 milhões de unidades)
  • Para pacientes alérgicos à penicilina, antibióticos alternativos podem ser usados sob supervisão cuidadosa

Após o tratamento, os pacientes necessitam de testes de acompanhamento de RPR para garantir o sucesso do tratamento. O título de RPR deve diminuir pelo menos quatro vezes (por exemplo, de 1:256 para 1:64 ou menor) dentro de 12 meses após o tratamento.

Igualmente importante é a notificação e tratamento de parceiros. Qualquer parceiro sexual dos últimos 90 dias deve ser avaliado e tratado presumivelmente para prevenir reinfecção e transmissão adicional.

Implicações Clínicas para Pacientes

Este caso tem várias implicações importantes para pacientes:

Primeiro, demonstra que a sífilis pode se manifestar com sintomas que imitam outras doenças. Pacientes com erupções cutâneas inexplicadas, dor articular, queda de cabelo ou feridas orais devem discutir a possibilidade de teste para sífilis com seus profissionais de saúde, especialmente se tiverem fatores de risco para infecções sexualmente transmissíveis.

Segundo, destaca a importância de históricos sexuais completos. Os pacientes devem se sentir confortáveis discutindo seu histórico sexual com profissionais de saúde, pois esta informação pode ser crucial para um diagnóstico preciso.

Terceiro, mostra que a sífilis é cada vez mais comum, com casos aumentando 74% nos Estados Unidos entre 2017 e 2021. Este aumento afeta todas as populações, embora as taxas sejam mais altas entre homens que fazem sexo com homens.

Finalmente, o caso ilustra que a sífilis é completamente curável com tratamento antibiótico apropriado, especialmente quando detectada precocemente. O diagnóstico tardio pode levar a complicações mais sérias, incluindo danos neurológicos e cardiovasculares em estágios posteriores.

Limitações e Considerações

Embora este caso forneça insights valiosos, há algumas limitações a considerar:

O diagnóstico foi baseado na apresentação clínica e testes sanguíneos, sem confirmação tecidual ou detecção direta da bactéria. Embora isso seja padrão para o diagnóstico de sífilis, significa que há uma pequena possibilidade de resultados falso-positivos, embora a combinação de testes torne isso improvável.

O caso representa a experiência de um único paciente, e a sífilis pode se manifestar diferentemente em diferentes pessoas. Nem todos os pacientes terão a mesma combinação de sintomas, e alguns podem ter manifestações menos ou mais severas.

O paciente tinha histórico familiar de psoríase e infecção recente por COVID-19, o que pode ter influenciado sua resposta imune ou apresentação sintomática. Esses fatores poderiam potencialmente tornar seu caso um tanto único comparado a outras apresentações de sífilis.

Finalmente, embora a resposta ao tratamento seja tipicamente excelente para sífilis secundária, alguns pacientes podem experimentar sintomas persistentes ou necessitar de retratamento se o título de RPR não diminuir adequadamente.

Recomendações para Pacientes

Com base neste caso, os pacientes devem considerar as seguintes recomendações:

  1. Faça exames regularmente se você tiver fatores de risco para infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), incluindo parceiros novos ou múltiplos, relações sexuais sem preservativos ou relações com parceiros que possam ter outros parceiros
  2. Discuta os sintomas abertamente com profissionais de saúde, incluindo alterações na pele, dor articular, queda de cabelo ou feridas na boca, mesmo que pareçam não estar relacionadas à saúde sexual
  3. Complete os tratamentos prescritos integralmente se for diagnosticado com sífilis ou qualquer outra infecção sexualmente transmissível
  4. Garanta que os parceiros sejam testados e tratados para prevenir reinfecção e transmissão adicional
  5. Realize acompanhamento com exames repetidos após o tratamento para garantir que a infecção foi curada com sucesso
  6. Pratique sexo seguro usando preservativos para reduzir o risco de transmissão, embora seja importante observar que preservativos não previnem toda transmissão de sífilis, já que as lesões podem ocorrer em áreas não cobertas por preservativos

Os pacientes devem lembrar que a sífilis é completamente tratável, especialmente quando detectada precocemente. Não deve haver estigma associado a fazer exames ou tratamento para infecções sexualmente transmissíveis — estas são condições médicas comuns que requerem cuidados médicos apropriados.

Informações da Fonte

Título do Artigo Original: Caso 19-2024: Um Homem de 46 Anos com Artrite e Erupção Cutânea

Autores: April M. Jorge, M.D., Kevin L. Ard, M.D., e Sarah E. Turbett, M.D.

Publicação: The New England Journal of Medicine, 20 de junho de 2024

DOI: 10.1056/NEJMcpc2402482

Este artigo de linguagem acessível é baseado em pesquisa revisada por pares da série Registros de Casos do Massachusetts General Hospital. O artigo original representa discussão e diagnóstico de caso clínico real por médicos experientes da Harvard Medical School.