Este artigo relata um intrigante caso médico histórico de 1923, envolvendo um homem de 24 anos que faleceu em decorrência de uma grave doença respiratória, hoje identificada como influenza com complicações bacterianas. A partir desse episódio, especialistas revisitam a devastadora pandemia de gripe de 1918 e analisam os avanços científicos significativos no entendimento, monitoramento e vacinação contra a influenza ao longo do último século. Paralelamente, destacam desafios ainda presentes na preparação de sistemas de saúde pública e no acesso equitativo às vacinas, questões que mantêm relevância nos dias atuais.
Compreendendo a Influenza: Lições de um Século de Resposta a Pandemias
Sumário
- Apresentação do Caso: O Homem de 24 Anos
- Exame Físico e Achados
- Diagnóstico Diferencial
- A Pandemia de Influenza de 1918
- A Descoberta do Vírus da Influenza
- Desenvolvimento das Primeiras Vacinas
- Sistemas de Vigilância da Influenza
- A Pandemia de Gripe Asiática de 1957
- A Pandemia de Gripe de Hong Kong de 1968
- A Pandemia de Gripe Suína de 2009
- Estado Atual da Proteção contra Influenza
- Implicações para Pandemias Futuras
- Informações da Fonte
Apresentação do Caso: O Homem de 24 Anos
Em março de 1923, um homem de 24 anos, previamente saudável, chegou ao Massachusetts General Hospital com sintomas respiratórios graves. A doença havia começado três dias antes, com mal-estar, fraqueza generalizada, dor de cabeça e dor nas costas. Nos dois dias seguintes, os sintomas persistiram, e ele permaneceu a maior parte do tempo acamado.
No dia anterior à internação, ele desenvolveu febre, tosse seca e calafrios intensos, que o fizeram tremer violentamente e se encolher em posição fetal. Ele tomou aspirina na dose de 10 grãos (648 mg) a cada 4 horas, o que aliviou parcialmente a dor de cabeça e a dor nas costas. No dia da admissão, acordou com dificuldade para respirar e dor no peito logo abaixo do processo xifoide (a ponta inferior do osso esterno), que piorava com a respiração profunda e a tosse.
Exame Físico e Achados
No exame, o paciente apresentava temperatura retal elevada, variando de 39,5°C a 40,8°C (103,1°F a 105,4°F), frequência cardíaca aumentada entre 92 e 145 batimentos por minuto e frequência respiratória rápida de 28 a 58 respirações por minuto. Ele parecia gravemente enfermo, ansioso e tremia, apesar de estar envolto em vários cobertores.
Sua respiração era rápida, superficial e trabalhosa, com episódios frequentes de tosse intensa que produzia escarro rosado, espesso e levemente purulento (contendo pus). A tosse causava dor excruciante na região inferior do esterno.
O exame revelou:
- Bulhas cardíacas rápidas e regulares, com sopro sistólico suave no ápice
- Murmúrios vesiculares diminuídos no lado direito das costas, da escápula para baixo
- Nenhuma evidência de estertores (sons pulmonares anormais) ou atrito pleural
- Contagem de leucócitos variando de 3.700 a 14.500 por microlitro, com 79% de neutrófilos (um tipo de leucócito que combate infecções)
- Hemoculturas sem crescimento bacteriano
A radiografia de tórax mostrou consolidações bilaterais em manchas (áreas de tecido pulmonar denso), mais confluentes no lobo superior direito e no lobo inferior esquerdo, sugerindo pneumonia. Havia também plenitude na região hilar esquerda (onde vias aéreas e vasos sanguíneos entram nos pulmões), possivelmente indicando linfadenopatia (linfonodos inchados).
Apesar do tratamento, o estado do paciente piorou ao longo de quatro dias. Seu escarro tornou-se mais purulento, e aumentou a macicez à percussão na região lombar esquerda. Ele gradualmente ficou mais fraco e faleceu no quarto dia de internação.
Diagnóstico Diferencial
Especialistas médicos que analisaram o caso concluíram que o paciente provavelmente tinha influenza, possivelmente complicada por uma superinfecção bacteriana que causou pneumonia e possível empiema (acúmulo de pus no espaço entre os pulmões e a parede torácica). A apresentação ocorreu apenas cinco anos após a devastadora pandemia de influenza de 1918, tornando a influenza o diagnóstico mais provável.
O caso serve como uma janela para entender o quanto avançamos no diagnóstico, tratamento e prevenção da influenza ao longo do século passado.
A Pandemia de Influenza de 1918
A pandemia de influenza de 1918, frequentemente chamada de "gripe espanhola", na verdade começou nos Estados Unidos. O primeiro caso foi diagnosticado em um cozinheiro do Exército dos EUA em Fort Riley, Kansas, em 4 de março de 1918. Pouco depois, um médico chamado Loring Miner, no Condado de Haskell, Kansas, diagnosticou 18 casos de influenza grave, incluindo três óbitos.
Infelizmente, durante a Primeira Guerra Mundial, o governo dos EUA não foi transparente sobre a gravidade do surto. Como observou o historiador John Barry: "O governo mentiu. Mentiram sobre tudo... Simplesmente não disseram a verdade ao povo sobre o que estava acontecendo." Como a Espanha era neutra na guerra e publicava abertamente sobre a doença, ela ficou conhecida como "gripe espanhola", apesar de ter se originado nos EUA.
A pandemia foi devastadora:
- 300.000 americanos morreram apenas entre setembro e dezembro de 1918
- Esse número de mortes foi 10 vezes maior do que por qualquer causa no mesmo período em 1915
- Mais de 500 milhões de pessoas em todo o mundo foram afetadas
- Estima-se que 100 milhões de pessoas morreram globalmente
As opções de tratamento eram extremamente limitadas em 1918, consistindo principalmente de aspirina e ópio. A única intervenção com algum sucesso foi a transfusão de sangue de pacientes recuperados para pacientes recém-infectados—o que hoje chamamos de terapia com plasma convalescente.
A Descoberta do Vírus da Influenza
Por anos, o agente causador da "gripe espanhola" foi incorretamente considerado o bacilo de Pfeiffer (agora conhecido como Haemophilus influenzae). Essa bactéria foi encontrada no escarro de muitos—mas não todos—os pacientes afetados, e sua ausência foi atribuída à dificuldade de cultivo.
O verdadeiro vírus da influenza foi finalmente identificado em 1933 por Wilson Smith e colegas. Eles coletaram lavados de garganta de pessoas com influenza, passaram-nos por uma membrana impermeável a bactérias e expuseram furões ao filtrado estéril. Os furões desenvolveram sintomas semelhantes aos da influenza em dois dias.
Curiosamente, um dos colegas de Smith, Charles Stuart-Harris, contraiu influenza acidentalmente após um furão infectado "espirrar violentamente a curta distância". O vírus isolado de Stuart-Harris foi então usado para infectar um furão previamente não infectado, demonstrando a transmissão.
Desenvolvimento das Primeiras Vacinas
Uma vez identificado o vírus da influenza, começou-se o trabalho no desenvolvimento de vacinas. Em 1936, Frank Macfarlane Burnet descobriu que o vírus da influenza crescia facilmente em ovos de galinha fertilizados—um método de produção ainda usado hoje.
A primeira vacina contra influenza foi desenvolvida em 1940 por Thomas Francis e Jonas Salk. Dado o impacto devastador da influenza nas forças militares durante a Primeira Guerra Mundial, soldados do Exército dos EUA foram os primeiros a serem vacinados no início dos anos 1940. Até 1942, evidências mostraram que a vacinação proporcionava proteção, e a primeira vacina contra influenza foi aprovada para uso civil em 1946.
A vacinação mostrou-se altamente eficaz—a incidência de influenza entre pessoas não vacinadas foi 10 a 25 vezes maior do que entre indivíduos vacinados.
Sistemas de Vigilância da Influenza
À medida que as vacinas se desenvolveram, os sistemas de vigilância tornaram-se criticamente importantes para monitorar a atividade da influenza e orientar as respostas de saúde pública. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) estabeleceram seu primeiro sistema de vigilância da influenza em 1954.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) formou o Sistema Global de Vigilância e Resposta à Influenza em 1952. Essa colaboração agora inclui 144 centros nacionais de influenza em mais de 114 países que realizam vigilância durante todo o ano.
Hoje, a vigilância da influenza do CDC repousa sobre quatro pilares:
- Testes laboratoriais (100 laboratórios de saúde pública e 300 laboratórios clínicos)
- Monitoramento de casos ambulatoriais (3.400 provedores relatando cerca de 100 milhões de consultas de pacientes)
- Acompanhamento de hospitalizações (cobrindo 9% da população dos EUA através do sistema FluSurv-NET)
- Registro de óbitos (através de dados de certidões de óbito e vigilância de mortalidade pediátrica)
A Pandemia de Gripe Asiática de 1957
A pandemia de influenza de 1957 originou-se no sul da China no início de 1957. O novo subtipo viral (vírus influenza A subtipo H2N2) resultou de uma mutação em uma cepa de influenza aviária em patos selvagens que se recombinou com uma cepa de influenza humana.
A China ainda não fazia parte da OMS e não informou o resto do mundo sobre o surto. O alerta veio do microbiologista americano Maurice Hilleman, que leu sobre milhares de casos em Hong Kong no New York Times em abril de 1957. Após adquirir uma amostra do vírus de médicos da Marinha dos EUA no Japão, Hilleman identificou a cepa e alertou para uma potencial pandemia.
O vírus chegou aos EUA em junho de 1957 através de militares infectados retornando da Ásia. A pandemia teve duas ondas:
- Primeira onda (outubro de 1957): Afetou principalmente crianças em idade escolar
- Segunda onda: Afetou mais fortemente adultos mais velhos, com maior mortalidade
A resposta dos EUA foi limitada—apenas 30 milhões de pessoas foram vacinadas (aproximadamente 18% da população). Apesar dessa vacinação limitada, a pandemia de 1957 causou:
- 20 milhões de infecções documentadas nos EUA
- 116.000 óbitos nos EUA
- 1 a 4 milhões de mortes em todo o mundo
Estima-se que a vacina disponível antes do pico de fevereiro de 1958 salvou mais de 1 milhão de vidas americanas.
A Pandemia de Gripe de Hong Kong de 1968
A pandemia de influenza de 1968 começou na China em julho de 1968. Dentro de duas semanas, 500.000 casos haviam sido documentados em Hong Kong. O novo subtipo viral (vírus influenza A subtipo H3N2) resultou de uma mutação genética que facilitou a transmissão de humano para humano.
Felizmente, havia similaridade suficiente com cepas anteriores de influenza que a exposição prévia oferecia proteção parcial. Embora altamente transmissível, a "gripe de Hong Kong" causou doença mais branda do que as pandemias de 1918 e 1957.
A pandemia resultou em:
- 1 milhão de mortes em todo o mundo
- 100.000 mortes nos EUA, principalmente entre adultos mais velhos
Uma vacina monovalente tornou-se disponível, mas apenas após o pico da pandemia.
A Pandemia de Gripe Suína de 2009
A pandemia de influenza de 2009 começou no México em março de 2009, com o primeiro óbito ocorrendo lá em abril. O novo subtipo viral (vírus influenza A subtipo H1N1) foi uma realocação tripla de vírus de aves, suínos e humanos, inicialmente chamada de "gripe suína".
O impacto global incluiu:
- 700 milhões a 1,4 bilhão de pessoas afetadas em todo o mundo
- 284.000 mortes excessivas estimadas
- 60 milhões de casos nos EUA
- 274.000 hospitalizações nos EUA
- 12.500 mortes estimadas nos EUA
Embora 41% da população dos EUA tenha recebido a vacina sazonal contra influenza naquele ano, ela não protegeu contra o H1N1. A vacina monovalente H1N1 tornou-se disponível em outubro de 2009, por volta do momento em que os casos nos EUA atingiram o pico. Apenas 27% da população dos EUA recebeu esta vacina direcionada, embora aproximadamente 40% das crianças em idade escolar tenham sido vacinadas através de programas de vacinação escolar.
Estado Atual da Proteção contra Influenza
Hoje, as vacinas contra influenza são desenvolvidas pela OMS duas vezes por ano. Nos últimos 20 anos, a eficácia média relatada variou de 40% a 55%. A cobertura vacinal varia significativamente:
- Aproximadamente 50% da população dos EUA é vacinada anualmente
- Quase 75% das pessoas acima de 65 anos são vacinadas a cada ano
- Quase 50% das pessoas com seguro saúde são vacinadas
- Apenas 15% das pessoas sem seguro recebem vacinação contra influenza
O programa Vacinas para Crianças fechou com sucesso essa lacuna para populações pediátricas. Um programa similar, Vacinas para Adultos, foi proposto no orçamento presidencial para auxiliar mais de 25 milhões de adultos não segurados, mas este programa ainda não foi financiado.
Durante a pandemia de COVID-19, o CDC desenvolveu o painel da Rede de Vigilância de Hospitalizações por Vírus Respiratórios (RESP-NET) para monitorar infecções por COVID-19, influenza e vírus sincicial respiratório. Entretanto, agora que a emergência de saúde pública da COVID-19 terminou, o CDC não tem autoridade para obrigar a notificação de dados de hospitalização—a notificação à Rede Nacional de Segurança em Saúde (NHSN) é voluntária.
Implicações para Pandemias Futuras
Progresso científico notável foi alcançado desde a pandemia de influenza de 1918. Identificamos o vírus, desenvolvemos vacinas e criamos sistemas de vigilância que fornecem alertas mais precoces de pandemias potenciais. No entanto, desafios significativos persistem:
A vontade política e os contratos sociais estagnaram desde 1918. Dados de vigilância são notificados voluntariamente, sem compromisso bipartidário para padronizar a notificação. Frequentemente há engajamento comunitário insuficiente para tomar ações que protejam outros. Desafios de comunicação fomentam alarmismo, controvérsia e desinformação.
Como John Barry escreveu: "A sociedade não pode funcionar se cada um cuida apenas de si. Por definição, a civilização não sobrevive a isso." O diagnóstico para nosso país é este: apesar de avanços científicos tremendos, pouco progresso foi feito em abordar os desafios sociais que limitam o impacto de nosso progresso acadêmico.
Falhar em aprender com pandemias anteriores nos deixou com sistemas fragmentados de saúde, saúde pública e distribuição de vacinas. Embora avanços significativos tenham sido feitos em reconhecer essas fraturas durante a COVID-19, devemos aproveitar essas lições para o preparo futuro para pandemias.
Informações da Fonte
Título do Artigo Original: Caso 27-2024: Um Homem de 24 Anos com Dor e Dispneia
Autores: Rochelle P. Walensky, Meridale V. Baggett, Kathy M. Tran, Jo-Anne O. Shepard, David M. Dudzinski, Dennis C. Sgroi
Publicação: The New England Journal of Medicine, 5 de setembro de 2024
DOI: 10.1056/NEJMcpc2402491
Este artigo de linguagem acessível é baseado em pesquisa revisada por pares do The New England Journal of Medicine.