Entendendo a Hipercalcemia Relacionada ao Câncer: Um Guia para Pacientes.

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A hipercalcemia associada ao câncer é um quadro grave, em que níveis elevados de cálcio complicam o tratamento oncológico, afetando até 30% dos pacientes durante a evolução da doença. Esta revisão abrangente destaca que a hipercalcemia frequentemente indica doença avançada, com desfechos de sobrevida desfavoráveis (mediana de 25 a 52 dias após o diagnóstico), mas tratamentos eficazes, como hidratação venosa, medicamentos para fortalecimento ósseo — como o zoledronato (com eficácia de 88,4%) — e terapia oncológica dirigida, podem auxiliar no controle dos sintomas. É fundamental que os pacientes compreendam que o sucesso do tratamento depende, sobretudo, do controle do câncer de base, ao mesmo tempo em que se abordam os níveis de cálcio por meio de hidratação e medicamentos específicos.

Compreendendo a Hipercalcemia Associada ao Câncer: Um Guia para o Paciente

Sumário

Introdução: O que é Hipercalcemia Associada ao Câncer?

A hipercalcemia é o excesso de cálcio no sangue. Quando ocorre em pacientes com câncer, é chamada de hipercalcemia associada ao câncer. Essa condição surge quando o câncer desregula o equilíbrio natural do cálcio no organismo, que é controlado principalmente pelos ossos, rins e intestino.

O caso que motivou este estudo envolve uma mulher de 60 anos com carcinoma urotelial (câncer de bexiga) que chegou ao pronto-socorro com sonolência e falta de apetite. Seus exames de sangue mostraram níveis perigosamente altos de cálcio: 16,1 mg/dL (sendo que o normal é entre 8,8 e 10,2 mg/dL), além de outros valores alterados que confirmaram a hipercalcemia relacionada ao câncer, e não a outras causas.

O Problema Clínico: Prevalência e Prognóstico

A hipercalcemia é uma complicação frequente no tratamento oncológico, afetando até 30% dos pacientes em algum momento da doença. No entanto, estudos recentes indicam que a prevalência pode estar caindo para cerca de 2% a 3% dos pacientes com câncer, com uma redução de 1 ponto percentual entre 2009 e 2013, provavelmente devido a melhores tratamentos preventivos.

Essa condição é mais comum em pacientes com certos tipos de câncer:

  • Câncer de pulmão de células não pequenas
  • Câncer de mama
  • Mieloma múltiplo
  • Carcinomas de células escamosas de cabeça e pescoço
  • Carcinomas uroteliais (câncer de bexiga)
  • Câncer de ovário

Infelizmente, a hipercalcemia associada ao câncer geralmente indica doença avançada e tem um prognóstico ruim. Estudos antigos apontavam uma sobrevida média de apenas 30 dias após o surgimento da hipercalcemia. Mesmo com os tratamentos atuais, os resultados ainda são preocupantes, com sobrevida média variando de 25 a 52 dias.

Alguns pacientes têm melhores resultados. Aqueles com cânceres hematológicos ou de mama tendem a viver mais do que pacientes com outros tipos de tumor. Pacientes que normalizam os níveis de cálcio e recebem quimioterapia também apresentam maior sobrevida.

Como a Hipercalcemia se Desenvolve: O Sistema de Cálcio do Corpo em Desequilíbrio

Historicamente, os pesquisadores classificaram a hipercalcemia associada ao câncer em quatro tipos, conforme o mecanismo de desequilíbrio do cálcio:

Hipercalcemia Humoral (Mais Comum)
Responsável pela maioria dos casos, ocorre quando os tumores secretam a proteína relacionada ao hormônio da paratireoide (PTHrP). Normalmente, a PTHrP atua localmente como fator de crescimento, mas as células cancerosas podem liberá-la na corrente sanguínea, onde imita o hormônio da paratireoide, levando à liberação de cálcio pelos ossos e à retenção pelos rins.

Hipercalcemia Osteolítica Local
Ocorre quando o câncer se espalha para os ossos (metástases ósseas), principalmente em casos de câncer de mama ou mieloma múltiplo. As células tumorais no osso produzem substâncias que aumentam a degradação óssea, liberando cálcio no sangue.

Hipercalcemia Mediada por 1,25-Dihidroxivitamina D
Alguns tumores, especialmente linfomas, produzem excesso de vitamina D ativa, o que aumenta a absorção de cálcio dos alimentos e a degradação óssea.

Hiperparatireoidismo Ectópico
Tumores muito raros podem produzir o hormônio da paratireoide (PTH) de fato, causando efeitos semelhantes ao hiperparatireoidismo.

Pesquisas recentes sugerem que essa classificação pode ser simplista. Até 30% dos pacientes podem ter múltiplos mecanismos atuando ao mesmo tempo, e alguns estudos encontraram PTHrP elevada em apenas 32% a 38% dos casos de hipercalcemia, indicando que nosso entendimento ainda está evoluindo.

Diagnóstico da Hipercalcemia: Exames e Medições

O diagnóstico da hipercalcemia envolve exames de sangue para medir os níveis de cálcio e identificar a causa subjacente. Como níveis baixos de albumina podem afetar as medições, os médicos costumam usar uma fórmula de correção:

Nível de cálcio corrigido = cálcio medido + 0,8 × (4,0 - nível de albumina sérica)

Os exames diagnósticos essenciais incluem:

  • Níveis de hormônio da paratireoide (PTH) – geralmente baixos na hipercalcemia por câncer
  • Proteína relacionada ao hormônio da paratireoide (PTHrP) – frequentemente elevada
  • Níveis de vitamina D (25-hidroxi e 1,25-dihidroxi)
  • Níveis de fósforo – geralmente baixos
  • Exames de função renal

É importante destacar que 6% a 21% dos pacientes com câncer e hipercalcemia podem ter hiperparatireoidismo primário coincidente (uma condição não cancerosa), por isso exames completos são essenciais para o tratamento adequado.

Abordagens de Tratamento: Três Princípios Fundamentais

O tratamento da hipercalcemia associada ao câncer segue três princípios básicos:

  1. Correção da desidratação – A hipercalcemia causa micção excessiva e perda de líquidos
  2. Inibição da degradação óssea – Uso de medicamentos para reduzir a liberação de cálcio dos ossos
  3. Tratamento do câncer subjacente – Controlar o câncer é fundamental para o manejo a longo prazo

As decisões de tratamento dependem da altura dos níveis de cálcio, da velocidade de aumento e da presença de sintomas como confusão ou alteração do estado mental. Se o cálcio corrigido ultrapassar 13 mg/dL, os níveis estiverem subindo rapidamente (mais de 1 mg/dL por dia) ou o paciente apresentar alterações mentais, o tratamento deve começar imediatamente.

Tratamento com Hidratação: O Primeiro Passo

A hipercalcemia geralmente causa desidratação severa por meio de vários mecanismos:

  • Perda de apetite e vômitos
  • Diabetes insipidus nefrogênico (condição em que os rins não conseguem concentrar a urina)
  • Função renal reduzida devido à desidratação

Soro fisiológico intravenoso é o primeiro tratamento, ajudando a restaurar o volume de líquidos e permitindo que os rins excretem mais cálcio. A taxa e a duração da hidratação dependem do grau de desidratação, da gravidade da hipercalcemia e de condições cardíacas preexistentes.

Às vezes, os médicos acrescentam diuréticos de alça (como furosemida) após a reidratação para aumentar a excreção de cálcio, mas pesquisas não comprovaram que isso funcione melhor do que a hidratação isolada. É crucial que diuréticos NUNCA sejam administrados antes da reposição de volume, pois podem piorar a desidratação e a hipercalcemia.

A hidratação agressiva geralmente reduz os níveis de cálcio em 1 a 2 mg/dL, mas esse efeito é temporário sem tratamentos adicionais direcionados à reabsorção óssea e ao câncer subjacente.

Medicamentos para Proteger os Ossos: Bisfosfonatos e Denosumabe

Como a maior parte da hipercalcemia associada ao câncer resulta da degradação óssea excessiva, medicamentos que inibem esse processo são essenciais:

Bisfosfonatos
Esses medicamentos (pamidronato, zoledronato, ibandronato) agem interferindo na função dos osteoclastos (células que degradam osso). A administração intravenosa normaliza os níveis de cálcio em 60% a 90% dos pacientes.

Pesquisas mostram que o zoledronato é particularmente eficaz:

  • Dose de 4mg normalizou o cálcio em 88,4% dos pacientes até o 10º dia
  • Dose de 8mg normalizou o cálcio em 86,7% dos pacientes
  • Pamidronato (90mg) normalizou o cálcio em apenas 69,7% dos pacientes
  • Zoledronato agiu mais rápido, com 50% dos pacientes normalizados até o 4º dia, contra 33,3% com pamidronato
  • A duração média da resposta foi de 32 dias com zoledronato 4mg, contra 18 dias com pamidronato

A dose de 4mg de zoledronato é geralmente administrada a cada 3 a 4 semanas, conforme necessário, para hipercalcemia recorrente. No entanto, os bisfosfonatos podem piorar problemas renais e não são recomendados para pacientes com insuficiência renal grave (clearance de creatinina inferior a 35 ml/minuto).

Denosumabe
Este medicamento é um anticorpo monoclonal que tem como alvo a RANKL, uma proteína-chave na degradação óssea. Diferente dos bisfosfonatos, o denosumabe não afeta a função renal e pode ser usado em pacientes com comprometimento renal.

Estudos mostram que o denosumabe normaliza os níveis de cálcio em cerca de 70% dos pacientes com hipercalcemia associada ao câncer. Ele retarda significativamente o tempo até o primeiro evento hipercalcêmico e reduz o risco de recorrência em comparação com o zoledronato. Em pacientes que não respondem aos bisfosfonatos, o denosumabe normalizou o cálcio com sucesso em 63,6% dos casos.

Calcitonina
Este hormônio reduz os níveis de cálcio rapidamente (em 4 a 6 horas), diminuindo a degradação óssea e aumentando a excreção renal. No entanto, seu efeito é de curta duração (2 a 3 dias) devido à redução dos receptores, sendo mais útil no manejo agudo enquanto se aguarda a ação de medicamentos de efeito mais lento.

Comparação das Opções de Tratamento

Diferentes tratamentos oferecem benefícios variados:

Soro Fisiológico Intravenoso
- Reduz o cálcio em 1-2 mg/dL
- Efeito transitório sem tratamentos adicionais
- Passo inicial essencial para todos os pacientes

Diuréticos de Alça (Furosemida)
- Podem ser adicionados após reidratação
- Nenhum benefício comprovado sobre a hidratação isolada
- Risco de desequilíbrios eletrolíticos

Zoledronato (4mg IV)
- Bisfosfonato mais eficaz (88,4% de taxa de resposta)
- Duração média da resposta: 32 dias
- Não recomendado para insuficiência renal grave

Denosumabe (120mg SC)
- Eficaz em caso de comprometimento renal
- 70% de taxa de resposta geral
- 63,6% de resposta em casos resistentes a bisfosfonatos

Calcitonina (4-8 UI/kg)
- Ação rápida (4-6 horas)
- Duração curta (2-3 dias)
- Útil como terapia ponte

Recomendações Clínicas para Pacientes

Com base nas evidências, aqui está o que os pacientes devem saber sobre o manejo da hipercalcemia associada ao câncer:

  1. Procure atendimento médico imediato se apresentar sintomas como sede excessiva, micção frequente, náusea, vômitos, prisão de ventre, dor abdominal, dor óssea, fraqueza muscular, confusão ou letargia
  2. Entenda que a hidratação é o primeiro passo crítico no tratamento – não recuse fluidos intravenosos quando recomendados
  3. Pergunte sobre medicamentos protetores dos ossos – o zoledronato é atualmente o bisfosfonato mais eficaz, mas o denosumabe pode ser melhor se você tiver problemas renais
  4. Reconheça que o tratamento do câncer é essencial – controlar o câncer subjacente é o que vai manejar a hipercalcemia a longo prazo
  5. Monitore os efeitos colaterais – todos esses tratamentos podem causar desequilíbrios eletrolíticos que exigem cuidado
  6. Saiba que a recorrência é comum – a hipercalcemia frequentemente retorna, exigindo tratamentos repetidos a cada 3 a 4 semanas

Compreendendo as Limitações

Embora os tratamentos possam reduzir efetivamente os níveis de cálcio, existem várias limitações importantes:

Primeiro, o prognóstico ruim associado à hipercalcemia associada ao câncer (sobrevida média de 25 a 52 dias) ressalta que essa é geralmente uma complicação de cânceres avançados e de difícil tratamento. Mesmo com o controle bem-sucedido do cálcio, o câncer subjacente permanece a principal preocupação.

Em segundo lugar, alguns pacientes respondem melhor ao tratamento do que outros. Aqueles com certos tipos de tumor (especialmente cânceres de pulmão e de vias aéreas superiores) e níveis mais elevados de PTHrP (peptídeo relacionado ao hormônio da paratireoide) podem ser mais resistentes aos bisfosfonatos e apresentar recorrência mais rápida.

Terceiro, todos os tratamentos apresentam riscos. A hidratação agressiva pode causar sobrecarga hídrica, especialmente em pacientes com problemas cardíacos. Os bisfosfonatos podem prejudicar a função renal. Todas as medicações podem causar distúrbios eletrolíticos que exigem monitorização cuidadosa.

Por fim, a maioria dos estudos sobre o tratamento da hipercalcemia é relativamente pequena, e mais pesquisas são necessárias para otimizar as estratégias de tratamento, especialmente para pacientes que não respondem às terapias iniciais.

Informações da Fonte

Título do Artigo Original: Hipercalcemia Associada ao Câncer
Autores: Theresa A. Guise, M.D. e John J. Wysolmerski, M.D.
Publicação: The New England Journal of Medicine, 14 de abril de 2022
DOI: 10.1056/NEJMcp2113128

Este artigo de linguagem acessível é baseado em pesquisa revisada por pares do The New England Journal of Medicine, adaptada para tornar informações médicas complexas compreensíveis a pacientes e cuidadores, preservando todos os dados científicos, estatísticas e recomendações clínicas do estudo original.