Este estudo de caso inovador revela como a restauração da função dos linfócitos T, por meio de transplante de medula óssea, levou à remissão completa de um câncer de pele resistente ao tratamento em uma paciente, causado por um tipo específico de papilomavírus humano (HPV). Uma mulher de 34 anos, com 43 lesões cutâneas associadas ao HPV — incluindo um tumor invasivo na testa que havia recidivado após múltiplas cirurgias e imunoterapia — apresentou desaparecimento total de todos os sintomas após o procedimento. A pesquisa demonstra, pela primeira vez, que certos subtipos de HPV desempenham um papel direto na perpetuação do câncer de pele, especialmente em pacientes com deficiências imunológicas específicas que comprometem a sinalização dos linfócitos T.
Como a Restauração da Função Imunológica Curou um Câncer de Pele Resistente
Sumário
- Contexto: Entendendo o Câncer de Pele e o HPV
- Histórico da Paciente: Um Caso Complexo
- Métodos de Investigação Utilizados
- Análise Detalhada do Tumor
- Achados Genéticos e Imunológicos
- Abordagem Terapêutica
- Resultados do Tratamento e Recuperação Imune
- Implicações para Pacientes
- Limitações do Estudo
- Fonte
Contexto: Entendendo o Câncer de Pele e o HPV
O câncer de pele, incluindo o carcinoma espinocelular cutâneo (CEC), é o tipo de câncer mais comum nos Estados Unidos e no mundo. Embora a maioria dos casos tenha bom prognóstico, cerca de 3 a 5% dos pacientes desenvolvem doença localmente avançada ou metastática, que pode ser fatal. Os fatores de risco bem estabelecidos incluem exposição à radiação ultravioleta (UV), tipo de pele, idade e sexo, mas o papel de certos vírus e da vigilância imunológica ainda era incerto.
Acreditava-se que os β-papilomavírus humanos cutâneos (β-HPVs) atuavam apenas no estágio inicial do câncer, em um modelo "hit-and-run", no qual facilitam o acúmulo de danos no DNA induzidos pela UV, mas tornam-se dispensáveis para a progressão da doença. Isso contrasta com os HPVs mucosos (como os associados ao câncer do colo do útero), nos quais o vírus conduz diretamente o desenvolvimento do câncer por meio da expressão contínua de oncogenes virais. O papel da evasão imunológica—como os cânceres escapam do sistema imune—também era pouco compreendido, embora se saiba que pacientes imunossuprimidos têm maior incidência de câncer de pele.
Histórico da Paciente: Um Caso Complexo
A paciente era uma mulher de 34 anos com histórico de meningite criptocócica (uma infecção fúngica grave que afeta o cérebro e os olhos) que desenvolveu doenças progressivamente graves relacionadas ao HPV. Ela apresentava:
- Condilomas orais (lesões verrucosas)
- Lesões verrucosas difusas (alterações cutâneas extensas semelhantes a verrugas)
- Múltiplos CECs recorrentes em áreas expostas ao sol
- 43 lesões ou sítios confirmados por biópsia
Sua suscetibilidade a infecções e cânceres de pele foi inicialmente atribuída a uma imunodeficiência combinada e sensibilidade à radiação, causadas por deficiência de ZAP70 e variantes bialélicas de RNF168. Acredita-se que o defeito no reparo do DNA mediado por UV, decorrente das mutações em RNF168, tenha aumentado significativamente os riscos e reduzido os benefícios do transplante de células hematopoiéticas (TCH, também conhecido como transplante de medula óssea).
O desenvolvimento de um CEC invasivo recorrente na testa, resistente a múltiplas cirurgias e à imunoterapia com inibidores de checkpoint, motivou seu encaminhamento aos National Institutes of Health (NIH) para avaliação e tratamento avançados.
Métodos de Investigação Utilizados
A paciente consentiu formalmente com a participação em três estudos clínicos e foi avaliada no NIH Clinical Center. Os pesquisadores utilizaram diversas técnicas avançadas para compreender sua condição:
- Citometria de fluxo para imunofenotipagem de células T
- Análise funcional da ativação e proliferação de células T
- Avaliação das respostas de células T específicas para HPV
- Testes de capacidade de reparo do DNA
- Western blot para análise da sinalização de ZAP70
- Análise histológica e molecular do CEC
- Genotipagem de HPV e identificação de variantes somáticas em genes relacionados ao câncer
Todos os métodos e protocolos clínicos foram aprovados pelo comitê de ética do NIH.
Análise Detalhada do Tumor
O CEC da testa apresentava características de alto risco para recorrência e disseminação:
- Tamanho: 5,2 cm
- Invasão profunda: 6 mm
- Reação estromal desmoplásica proeminente (tecido fibroso denso ao redor das células cancerígenas)
- Invasão perivascular e perineural (células cancerígenas invadindo vasos sanguíneos e nervos de até 3 mm)
- Diferenciação moderada a pobre (células mais agressivas)
Embora estudos anteriores sugerissem que os β-HPVs não são expressos em CECs avançados, o sequenciamento de RNA revelou altos níveis de transcrição de HPV19—uma variante β1-HPV associada a cânceres de pele. A análise mostrou:
- Duas junções internas no genoma do HPV19, indicando recombinação viral
- Cinco junções vírus-hospedeiro em quatro cromossomos, sugerindo múltiplos eventos de integração
- Transcrição ativa de produtos do HPV19 no tumor
O sequenciamento de DNA não identificou mutações somáticas comuns em CEC (como em TP53, NOTCH1/2 ou CDKN2A) nem instabilidade de microssatélites. A carga mutacional foi de apenas 5,7 mutações por megabase—muito abaixo da média de 50 mutações por megabase observada em CECs esporádicos.
A análise de assinaturas mutacionais revelou apenas modesta assinatura de exposição UV (26%, contra 77% em média em CECs esporádicos), além de assinaturas de envelhecimento, agentes alquilantes (25%) e cerca de 50% de padrões mutacionais desconhecidos.
Achados Genéticos e Imunológicos
O sequenciamento completo do exoma confirmou uma variante missense homozigótica em RNF168 (p.D103N), previamente associada à hipersensibilidade à radiação. No entanto, essa variante tem alta frequência alélica (0,14) na população americana miscigenada e foi predita como benigna em modelos computacionais.
Testes funcionais mostraram resposta normal de reparo do DNA a quebras de dupla fita após irradiação, com cinética de fosforilação-desfosforilação proteica normal e níveis de apoptose dentro dos parâmetros de referência—indicando ausência de sensibilidade genética à radiação.
A descoberta crucial foram variantes missense heterozigotas compostas em ZAP70 (c.733G→A, p.G245R; e c.1505C→T, p.P502L), que alteram resíduos altamente conservados nos domínios carboxiterminal-SH2 e quinase de ZAP70. Essas variantes foram preditas como prejudiciais e segregaram com o fenótipo da doença na família.
ZAP70 é essencial para a sinalização do receptor de células T (TCR). As células T CD4 e CD8 da paciente apresentaram:
- Níveis reduzidos de ZAP70 fosforilado após estimulação do TCR
- Fosforilação mínima de PLC-γ1 e ERK (moléculas-chave de sinalização)
- Comprometimento severo da ativação e proliferação de células T
- Resposta mínima a pools de peptídeos E6 de β1-HPV19
Abordagem Terapêutica
Após descartar hipersensibilidade à UV, os pesquisadores atribuíram um papel causal ao defeito de sinalização do TCR mediado por ZAP70 para as doenças mucocutâneas recorrentes relacionadas ao HPV, incluindo o CEC associado ao β1-HPV19.
Diante de um CEC invasivo, irressecável e de alto risco com integração genômica de β1-HPV19, resistente aos tratamentos convencionais devido ao defeito de sinalização do TCR, foi elaborado um plano terapêutico integrado após excluir metástases distantes por PET scan.
A abordagem incluiu:
- Terapia combinada com cetuximabe, 5-fluorouracil e cisplatina
- Profilaxia para CEC com capecitabina e nicotinamida
- Transplante de células hematopoiéticas haploidêntico (TCH) de um doador wild-type para ZAP70, para tratar definitivamente a imunodeficiência
Resultados do Tratamento e Recuperação Imune
A paciente não apresentou complicações clínicas durante o tratamento. A remissão estável de todas as lesões cutâneas relacionadas ao HPV foi alcançada após o TCH e mantida até o último acompanhamento, 35 meses após o transplante.
Após o enxerto do doador haploidêntico wild-type para ZAP70:
- A sinalização do TCR foi completamente restaurada
- A ativação e proliferação de células T normalizaram
- Ocorreu expansão robusta de células T específicas para HPV19
- Os padrões de expressão gênica em células T CD4 e CD8 em repouso e após estimulação tornaram-se semelhantes aos de controles saudáveis
A resolução completa incluiu todas as lesões faciais, verruga vulgar e verrugas planas na perna e mão esquerdas, além do CEC invasivo recorrente que havia resistido a tratamentos anteriores.
Implicações para Pacientes
Este caso demonstra que os β-HPVs podem ter um papel oncogênico direto na manutenção do CEC, não apenas como facilitadores iniciais, como se pensava. A pesquisa indica que:
- Certas imunodeficiências (especialmente defeitos em ZAP70 que afetam a sinalização do TCR) podem criar ambientes favoráveis a cânceres driven por HPV
- Avaliação genética e imunológica abrangente pode identificar causas tratáveis de cânceres resistentes
- A restauração da função imune por meio do TCH pode resolver até doenças avançadas e resistentes relacionadas ao HPV
- A vacinação contra HPV e terapias baseadas em imunidade podem ter aplicações mais amplas do que se imaginava
Para pacientes com câncer de pele recorrente ou resistente, especialmente aqueles com outras questões imunológicas, esta pesquisa sugere que uma avaliação imune detalhada pode revelar condições subjacentes tratáveis. O sucesso dessa abordagem destaca a importância de considerar o ambiente imunológico no tratamento do câncer e o potencial da imunoterapia mesmo em casos avançados.
Limitações do Estudo
Embora este caso ofereça insights importantes, algumas limitações devem ser consideradas:
- Trata-se de um relato de caso único, e os resultados podem não ser aplicáveis a todos os pacientes com condições semelhantes
- As mutações genéticas específicas desta paciente são raras; a maioria dos casos de câncer de pele não envolve essa imunodeficiência
- O transplante de células hematopoiéticas envolve riscos significativos e não é adequado para todos
- Os desfechos de longo prazo além de 35 meses ainda estão sob acompanhamento
- A abordagem requer centros médicos altamente especializados em imunologia e oncologia
Mais pesquisas são necessárias para entender quão comuns são mecanismos similares em outros pacientes com câncer de pele resistente e se imunoterapias menos invasivas podem obter resultados semelhantes em diferentes tipos de imunodeficiências.
Fonte
Título do Artigo Original: Resolução de Carcinoma Espinocelular pela Restauração da Sinalização do Receptor de Células T
Autores: Stefania Pittaluga, Roshini S. Abraham, Peiying Ye, Jenna R.E. Bergerson, Isaac Brownell, Gabriel J. Starrett, Megan V. Anderson, Triscia Martin, Derek MacMath, Hye Sun Kuehn, Jyothi Padiadpu, Siqi Zhao, Sergio D. Rosenzweig, Roxane Tussiwand, Warren J. Leonard, Mark Raffeld, Danielle E. Arnold, Andrea Lisco
Publicação: New England Journal of Medicine, 2025;393:469-78
DOI: 10.1056/NEJMoa2502114
Financiamento: National Institutes of Health
Este artigo, voltado a pacientes, baseia-se em pesquisa original publicada no New England Journal of Medicine. Preserva todos os achados significativos, dados e detalhes clínicos do estudo, tornando as informações acessíveis a pacientes e cuidadores.