O renomado especialista em síndrome do desconforto respiratório neonatal, Dr. Tore Curstedt, MD, relata como o desenvolvimento do surfactante salvador Curosurf enfrentou ceticismo inicial da comunidade acadêmica e de grandes farmacêuticas, apesar dos resultados marcantes em ensaios clínicos, que reduziram a mortalidade infantil de 51% para 30%. A trajetória do medicamento, desde seu início em um laboratório hospitalar que processava pulmões suínos até se tornar uma terapia global que já tratou quase quatro milhões de bebês prematuros, é um testemunho da perseverança e do papel fundamental de uma parceira farmacêutica pequena, porém dedicada.
Tratamento da Síndrome do Desconforto Respiratório Neonatal com Surfactante Pulmonar
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- O Desafio do Desenvolvimento do Surfactante
- Produção com Pulmão Suíno em Laboratório Hospitalar
- Rejeição pela Indústria Farmacêutica
- Resultados Clínicos Expressivos
- Interrupção Ética do Estudo Clínico
- Escalonamento da Produção para Uso Global
- Parceria com a Chiesi Farmaceutici
- Impacto Global em Bebês Prematuros
O Desafio do Desenvolvimento do Surfactante
O Dr. Tore Curstedt e sua equipe enfrentaram um desafio monumental após comprovar a eficácia do surfactante pulmonar. Embora tivessem uma terapia que revertia drasticamente a insuficiência respiratória em prematuros, o caminho do laboratório hospitalar para a disponibilização global estava repleto de obstáculos. Tanto a academia quanto a indústria farmacêutica recusaram inicialmente desenvolver e produzir o tratamento, criando uma barreira significativa para que milhares de recém-nascidos pudessem ter acesso.
Produção com Pulmão Suíno em Laboratório Hospitalar
Para conduzir as pesquisas iniciais e os primeiros estudos clínicos, o Dr. Tore Curstedt e seus colegas precisaram assumir a produção. Obtiveram pulmões suínos de abatedouros em Estocolmo e Uppsala, transportando de 50 a 100 quilos de tecido pulmonar para o laboratório do hospital. Ao longo de cinco anos, essa operação manual e em pequena escala permitiu a produção de aproximadamente 3.000 a 4.000 frascos de surfactante — o suficiente para tratar alguns milhares de prematuros, mas muito aquém da demanda global.
Rejeição pela Indústria Farmacêutica
A primeira grande empresa farmacêutica abordada foi a sueca Pharmacia. Após dois anos de avaliação, a companhia recusou-se a prosseguir com o produto. A decisão baseou-se em uma análise de mercado que projetava vendas anuais de não mais que 20 milhões de euros, contra custos de marketing de cerca de 100 milhões de euros, considerando o tratamento comercialmente inviável — mesmo com estudos clínicos já demonstrando sua eficácia profunda.
Resultados Clínicos Expressivos
Os dados clínicos que apoiavam a terapia eram inegáveis e transformadores. Nos estudos controlados, o grupo não tratado apresentou uma taxa de mortalidade devastadora de 51%. Em contraste, entre os prematuros que receberam o surfactante, a mortalidade caiu para 30% — uma redução maciça e clinicamente significativa, comprovando o potencial de salvar vidas. Esses resultados vieram de uma rede de neonatologistas em toda a Europa, embora o próprio Hospital Universitário Karolinska, do Dr. Curstedt, tenha inicialmente se recusado a participar.
Interrupção Ética do Estudo Clínico
A eficácia do tratamento foi tão marcante que levou ao encerramento precoce do estudo. Após tratar 75 bebês e manter outros 75 como controles, uma análise interina mostrou redução tão significativa na mortalidade que o comitê de ética considerou antiético negar o tratamento ao grupo controle. Como observa o Dr. Curstedt, este foi o único estudo controlado do tipo; todos os subsequentes focaram em dosagem e uso profilático, sem grupo não tratado.
Escalonamento da Produção para Uso Global
O principal obstáculo continuava sendo a impossibilidade de escalonar a produção em ambiente hospitalar. Como destacou o Dr. Curstedt, seu laboratório levou cinco anos para produzir surfactante para 3.000–4.000 bebês. Para atender à demanda global — que hoje chega a quase quatro milhões de recém-nascidos — seriam necessários mil anos no mesmo ritmo. Era imprescindível encontrar um parceiro industrial para que a terapia alcançasse seu potencial mundial.
Parceria com a Chiesi Farmaceutici
A virada veio com a Chiesi Farmaceutici, uma empresa familiar de Parma, Itália. Diferente da Pharmacia, a Chiesi reconheceu o valor e o potencial da terapia. O Dr. Curstedt reflete que a parceria foi ideal: “É melhor ter um produto importante em uma empresa pequena do que um produto marginal em uma grande”. A Chiesi agiu rapidamente e investiu para resolver os desafios da produção industrial a partir de pulmões suínos.
Impacto Global em Bebês Prematuros
O escalonamento bem-sucedido pela Chiesi permitiu que o trabalho do Dr. Curstedt alcançasse impacto global. O que começou com nove bebês tratados sob “uso compassivo” no Hospital Saint Göran culminou no tratamento de quase quatro milhões de prematuros em todo o mundo. A trajetória do Curosurf — de um laboratório hospitalar a uma terapia padrão global — é um dos grandes sucessos da medicina moderna, transformando o prognóstico de recém-nascidos com síndrome do desconforto respiratório.
Transcrição Completa
Dr. Anton Titov, MD: Você já tinha um medicamento comprovado em animais e em humanos, capaz de reverter drasticamente e salvar a vida de prematuros. Mas ainda era preciso produzi-lo e disponibilizá-lo. É surpreendente que tanto a academia quanto a indústria tenham inicialmente recusado fabricar essa medicação. Como ela se tornou disponível?
Dr. Tore Curstedt, MD: Nós mesmos produzimos o surfactante para os primeiros estudos, a partir de pulmões suínos de abatedouros em Estocolmo e Uppsala. Transportávamos de 50 a 100 quilos de tecido para o laboratório. Em cinco anos, produzimos cerca de 3.000 a 4.000 frascos — suficientes para tratar o mesmo número de bebês. Era nosso limite máximo. Mas para um estudo amplo, seria preciso produzir milhões. Escalonar no laboratório hospitalar era impossível.
Procuramos a Pharmacia, que após dois anos recusou. Alegaram que o mercado era pequeno — não mais que 20 milhões de euros anuais —, com custos de marketing de cerca de 100 milhões. Não se interessaram, mesmo sabendo que o medicamento salvava vidas em minutos. Já tínhamos estudos mostrando queda da mortalidade de 51% para 30%.
Dr. Anton Titov, MD: Um resultado extraordinário!
Dr. Tore Curstedt, MD: Sim. Iniciamos uma rede de neonatologistas na Europa em 1985, mas o Hospital Universitário Karolinska — nossa própria instituição — recusou-se a participar, mesmo sabendo que a medicação funcionava. Já havíamos tratado nove bebês no Hospital Saint Göran sob uso compassivo. Seis sobreviveram.
Dr. Anton Titov, MD: Resultados muito bons.
Dr. Tore Curstedt, MD: Sim, mas eles disseram não. Outros centros em Lund, Oslo, Alemanha, Inglaterra, Itália, França e Holanda participaram — mas não Estocolmo.
Dr. Anton Titov, MD: Todos, menos a instituição de origem.
Dr. Tore Curstedt, MD: Exato. Produzíamos no Karolinska e enviávamos para a Europa. No primeiro estudo, tratamos 75 bebês e tivemos 75 controles — apenas os casos mais graves, conforme aprovado pelo comitê de ética. Na análise interina, a redução da mortalidade no grupo tratado foi tão grande que tivemos de interromper o estudo. Não era ético deixar de tratar todos.
Dr. Anton Titov, MD: Muito dramático. O estudo parou não porque a medicação não funcionava, mas porque funcionava demais.
Dr. Tore Curstedt, MD: Exatamente. Não era mais ético negar o tratamento. Este foi o único estudo com grupo controle. Depois disso, todos os bebês foram tratados, e passamos a estudar dosagem, múltiplas administrações e profilaxia.
Mas ainda era impossível escalonar sozinhos. Precisávamos de uma empresa. A Pharmacia não quis.
Dr. Anton Titov, MD: Ainda assim?
Dr. Tore Curstedt, MD: Não. Diziam: “Na Suécia são só 300 a 500 casos”. Mas a demanda era global. Então contatamos a Chiesi Farmaceutici, uma pequena empresa familiar de Parma. Eles se interessaram.
Dr. Anton Titov, MD: Tinham incentivo para agir rápido e crescer.
Dr. Tore Curstedt, MD: Sim, e foi ótimo. No fim, foi melhor fazer um produto importante numa empresa pequena que um produto marginal numa grande. A Chiesi escalonou a produção.
Dr. Anton Titov, MD: E você liderou esse processo.
Dr. Tore Curstedt, MD: Sim, estivemos muito envolvidos. Produzir 3.000 a 4.000 frascos em cinco anos salvou milhares de bebês — alguns teriam sobrevivido de qualquer forma. Mas hoje tratamos quase quatro milhões. Produzir isso num hospital levaria mil anos. Era totalmente inviável.