Este caso descreve uma mulher de 32 anos que apresentou dor lombar súbita, febre e dificuldade respiratória, culminando no diagnóstico de nefropatia membranosa associada ao receptor de fosfolipase A2, uma condição renal grave. O caso ilustra como essa doença autoimune pode levar à perda maciça de proteínas na urina, níveis perigosamente baixos de proteínas no sangue e à formação de coágulos potencialmente fatais nas veias renais e nos pulmões, mesmo em adultos jovens previamente saudáveis. O diagnóstico foi confirmado por exames sanguíneos específicos que detectaram anticorpos anti-PLA2R, dispensando a necessidade de uma biópsia renal imediata.
A Jornada de uma Mulher Jovem com Doença Renal e Coágulos Sanguíneos: Entendendo a Nefropatia Membranosa
Sumário
- Apresentação do Caso: A História da Paciente
- Sintomas e Achados Iniciais
- Resultados do Exame Físico
- Resultados de Exames Laboratoriais
- Achados de Imagem
- Diagnóstico Diferencial
- Testes Diagnósticos
- Tratamento da Doença
- Implicações Clínicas para Pacientes
- Limitações Deste Caso
- Recomendações para Pacientes
- Informações da Fonte
Apresentação do Caso: A História da Paciente
Uma mulher de 32 anos foi admitida no hospital com dor lombar intensa do lado esquerdo, febre e baixa oxigenação no sangue. Os sintomas começaram duas semanas antes, com uma dor aguda e intermitente na região lombar esquerda, que piorou significativamente dois dias antes da internação, tornando-se constante e acompanhada de náuseas. No dia anterior à hospitalização, ela teve vários episódios de vômito.
Na manhã da admissão, desenvolveu tosse seca e sentiu febre, sem ter medido a temperatura. Primeiro, procurou uma clínica de urgência, onde sua temperatura estava em 38,1°C, a frequência cardíaca em 113 batimentos por minuto e a saturação de oxigênio em 95% em ar ambiente. A clínica observou sensibilidade abdominal no quadrante inferior esquerdo, mas nenhuma dor à palpação na região renal.
Sintomas e Achados Iniciais
Os primeiros exames laboratoriais revelaram várias alterações preocupantes. A contagem de leucócitos estava significativamente elevada, em 19.000 por microlitro (valores normais: 3.800–10.800), indicando uma resposta imune intensa ou infecção. O nível de albumina sérica estava baixo, em 2,8 g/dL (normal: 3,3–5,5 g/dL), sugerindo perda de proteínas.
A urinálise apresentou achados alarmantes, com sangue 3+ e proteína 3+ (ambos normalmente ausentes). Sua saturação de oxigênio caiu para 89% na clínica de urgência, necessitando de suplementação de oxigênio a 3 litros por minuto por cânula nasal para manter 94% de saturação. Esses resultados motivaram sua transferência para o pronto-socorro do hospital.
Resultados do Exame Físico
No pronto-socorro, seu estado parecia mais grave. A temperatura subiu para 39,6°C, a pressão arterial era de 102/58 mm Hg, a frequência cardíaca aumentou para 122 batimentos por minuto e a respiratória acelerou para 28 respirações por minuto. Ela precisou de suporte contínuo de oxigênio.
O exame físico mostrou que ela parecia desconfortável e apresentava sons pulmonares anormais, com crepitações inspiratórias e expiratórias em ambos os pulmões. Havia sensibilidade à palpação no quadrante inferior esquerdo do abdome. Notavelmente, não apresentava edema nas extremidades, úlceras orais, queda de cabelo ou erupções cutâneas, o que ajudou a descartar algumas doenças autoimunes.
Resultados de Exames Laboratoriais
Testes laboratoriais abrangentes forneceram informações diagnósticas cruciais. A contagem de leucócitos permaneceu elevada, em 16.020 por microlitro, com predomínio de neutrófilos (14.210 células). A urinálise continuou mostrando sangue 3+ e proteína 3+, com mais de 100 hemácias por campo de grande aumento (normal: 0–2) e 10–20 leucócitos por campo de grande aumento (normal: menos de 10).
A relação proteína-creatinina na urina estava dramaticamente elevada, em 3,5 (normal: menos de 0,15), indicando uma perda proteica de aproximadamente 3,5 gramas por dia na urina – uma característica definidora da síndrome nefrótica. Outros achados significativos incluíram:
- Proteína C reativa (marcador inflamatório): 199,9 mg/L (normal: 0–8,0)
- Velocidade de hemossedimentação (marcador inflamatório): 40 mm/h (normal: 0–19)
- Lactato desidrogenase: 278 U/L (normal: 110–210)
- Ácido lático: 2,2 mmol/L (normal: 0,5–2,0)
- Hemoglobina glicada (A1c): 6,2% (normal: 4,3–5,6%)
Os testes de função renal mostraram creatinina em 0,93 mg/dL (dentro da faixa normal), mas, sem um valor basal, não foi possível descartar lesão renal aguda.
Achados de Imagem
Os exames de imagem revelaram achados críticos que explicaram seus sintomas. A radiografia de tórax mostrou opacidades irregulares nas bases pulmonares e um pequeno derrame pleural esquerdo. A tomografia computadorizada (TC) de tórax com contraste revelou:
- Um defeito de preenchimento parcial na artéria pulmonar lobar inferior direita, sugerindo embolia pulmonar
- Espessamento da parede brônquica e opacidades consolidativas multifocais com aspecto em vidro fosco
- Pequenos derrames pleurais à esquerda e vestígios à direita
- Áreas de espessamento do septo interlobular com opacidades em vidro fosco
A TC de abdome e pelve mostrou achados ainda mais significativos:
- Um bloqueio quase completo (trombo oclusivo) na veia renal esquerda
- Um bloqueio parcial (trombo não oclusivo) na veia renal direita
- Realce heterogêneo precoce dos rins com estrias perinefréticas
- Nenhuma evidência de câncer no tórax, abdome ou pelve
Esses achados de imagem explicaram sua dor lombar (tromboses de veia renal) e as dificuldades respiratórias (embolia pulmonar e anormalidades pulmonares).
Diagnóstico Diferencial
A equipe médica considerou várias condições que poderiam explicar essa combinação de achados renais e pulmonares. A suspeita inicial foi a síndrome pulmão-rim, que envolve tanto hemorragia pulmonar quanto inflamação renal, geralmente causada por doenças autoimunes como:
- Vasculite associada a ANCA (anticorpo anticitoplasma de neutrófilos) (inflamação autoimune de pequenos vasos sanguíneos)
- Doença anti-membrana basal glomerular (síndrome de Goodpasture)
- Lúpus eritematoso sistêmico (LES) com envolvimento renal
- Síndrome do anticorpo antifosfolípide (distúrbio de coagulação sanguínea anormal)
- Vasculite crioglobulinêmica (proteínas anormais que se aglomeram em temperaturas frias)
No entanto, a ausência de certas características tornou essas condições menos prováveis. A equipe então focou na síndrome nefrótica, caracterizada por proteinúria intensa (>3,5 g/dia), baixa albumina sérica e edema. A presença de trombose de veia renal apontou fortemente para causas específicas da síndrome nefrótica, particularmente a nefropatia membranosa, que tem a maior associação com coágulos sanguíneos entre as doenças renais.
Outras causas da síndrome nefrótica foram consideradas, mas julgadas menos prováveis:
- Doença de lesões mínimas e glomeruloesclerose segmentar focal: Geralmente apresentam edema acentuado e são menos associadas à trombose
- Doença renal diabética: Seu A1c de 6,2% tornou isso improvável
- Nefrite lúpica: Nenhum histórico de dor articular, erupção cutânea ou outros sintomas autoimunes
- Causas secundárias, como infecções, câncer ou medicamentos: Nenhuma evidência no histórico
Testes Diagnósticos
A equipe realizou exames sanguíneos específicos para identificar a causa de sua síndrome nefrótica. Testaram a presença de anticorpos anti-PLA2R (receptor de fosfolipase A2), associados à nefropatia membranosa primária. Dois métodos diferentes foram utilizados:
- Teste de imunofluorescência indireta: Este método usa marcadores fluorescentes para detectar anticorpos ligados aos receptores PLA2R. Seu teste foi positivo.
- ELISA (ensaio de imunoabsorção enzimática): Este teste quantitativo mediu seu nível de anticorpos em 400,3 RU/mL (normal: <14 RU/mL).
A combinação de resultados positivos em ambos os testes, junto com sua apresentação clínica, confirmou o diagnóstico de nefropatia membranosa associada ao receptor de fosfolipase A2. Este teste sorológico tem 99% de especificidade para a condição, o que significa que quase todas as pessoas com testes positivos realmente têm a doença.
Tratamento da Doença
O tratamento da nefropatia membranosa depende de vários fatores. Para pacientes com função renal preservada, os médicos frequentemente recomendam um período de observação de 6 meses, já que cerca de 30% dos pacientes podem apresentar melhora espontânea sem tratamento imunossupressor. No entanto, esta paciente necessitou de intervenção imediata devido a várias características de alto risco:
- Hipoalbuminemia grave (albumina sérica <2,5 g/dL)
- Múltiplos eventos tromboembólicos (tromboses de veia renal e embolia pulmonar)
- Alto nível de anticorpos anti-PLA2R (400,3 RU/mL)
O tratamento geralmente envolve terapia imunossupressora. O padrão-ouro histórico é o regime de Ponticelli modificado, que alterna meses de corticosteroides e agentes alquilantes (como ciclofosfamida) por 6 meses. Abordagens mais recentes consideram a trajetória dos níveis de anticorpos anti-PLA2R – se os níveis caem espontaneamente, a imunossupressão pode ser adiada, mas níveis crescentes indicam necessidade de tratamento.
Além disso, ela precisou de tratamento imediato para as complicações tromboembólicas, com anticoagulantes para prevenir nova coagulação.
Implicações Clínicas para Pacientes
Este caso ilustra vários pontos importantes para pacientes com sintomas semelhantes. Primeiro, dor lombar com febre e dificuldades respiratórias nunca deve ser ignorada, especialmente quando acompanhada de baixa oxigenação. A combinação de proteína significativa na urina e coágulos sanguíneos, particularmente em locais incomuns como veias renais, deve levantar suspeita de nefropatia membranosa.
Os pacientes devem saber que a nefropatia membranosa é uma condição autoimune em que o corpo ataca suas próprias células renais, especificamente os receptores PLA2R nos podócitos (células renais especializadas que mantêm a barreira de filtração). Esse ataque causa vazamentos no sistema de filtração do rim, permitindo perda massiva de proteína na urina.
O risco de coagulação sanguínea é particularmente alto nessa condição porque a perda de proteínas leva à redução de anticoagulantes naturais, enquanto o fígado compensa produzindo mais fatores de coagulação. O risco é maior quando a albumina sérica cai abaixo de 2,5 g/dL, como ocorreu com esta paciente.
Limitações Deste Caso
Embora este caso forneça insights valiosos, ele tem várias limitações. Como um relato de caso único, não pode estabelecer padrões gerais ou respostas ao tratamento para todos os pacientes com nefropatia membranosa. O histórico familiar da paciente (irmã com doença renal em estágio terminal que faleceu aos 18 anos) sugere possíveis fatores genéticos, mas estes não foram totalmente explorados.
Sem uma biópsia renal, não é possível descartar definitivamente outras condições renais concomitantes, embora o teste altamente específico de anticorpos anti-PLA2R torne isso improvável. O caso também não fornece informações de acompanhamento de longo prazo sobre sua resposta ao tratamento ou desfecho final.
Recomendações para Pacientes
Com base neste caso, os pacientes devem considerar as seguintes recomendações:
- Procure atendimento médico imediato em caso de dor lombar persistente acompanhada de febre, dificuldades respiratórias ou baixa saturação de oxigênio
- Solicite um exame de urina completo se apresentar edema inexplicado, especialmente se acompanhado de dor lombar ou sintomas respiratórios
- Pergunte sobre testes específicos para anticorpos anti-PLA2R se receber o diagnóstico de síndrome nefrótica, pois isso pode fornecer um diagnóstico não invasivo
- Discuta a prevenção de trombose com seu nefrologista se tiver síndrome nefrótica com níveis baixos de albumina (<2,5 g/dL)
- Mantenha acompanhamento regular com especialistas em nefrologia e hematologia se diagnosticado com nefropatia membranosa, considerando os riscos duplos de progressão renal e complicações trombóticas
Os pacientes também devem estar cientes de que novos tratamentos estão constantemente surgindo para doenças renais autoimunes, e a consulta com um nefrologista especializado é essencial para o tratamento ideal.
Informações da Fonte
Título do Artigo Original: Caso 10-2025: Uma Mulher de 32 Anos com Dor Lombar, Febre e Hipoxemia
Autores: Anushya Jeyabalan, MD; Cynthia L. Czawlytko, MD; Laurence H. Beck, Jr., MD, PhD; Claire Trivin-Avillach, MD; Dennis C. Sgroi, MD; Eric S. Rosenberg, MD
Publicação: The New England Journal of Medicine, 10 de abril de 2025; 392:1428-1437
DOI: 10.1056/NEJMcpc2412517
Este artigo de linguagem acessível é baseado em pesquisa revisada por pares dos Casos Clínicos do Massachusetts General Hospital.