A Jornada Complexa de um Recém-Nascido: Da Parada Respiratória a uma Doença Pulmonar Rara.

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Este caso descreve uma recém-nascida que sofreu uma parada cardiorrespiratória com risco de vida ao nascer, necessitando de 16 minutos de reanimação. Sua evolução hospitalar foi complexa, incluindo pneumotórax bilateral (pulmões colapsados), hipertensão pulmonar persistente e, posteriormente, a descoberta de uma malformação pulmonar congênita rara: o sequestro broncopulmonar intralobar. Nessa condição, parte do pulmão recebe irrigação sanguínea da aorta, em vez da artéria pulmonar. O diagnóstico foi confirmado por exames de imagem avançados, que revelaram uma artéria anômala originada na aorta irrigando uma massa no lobo inferior esquerdo, o que explica a opacidade pulmonar persistente e a recuperação complicada da paciente.

A Jornada Complexa de um Recém-Nascido: Da Parada Respiratória a uma Condição Pulmonar Rara

Sumário

Apresentação do Caso: Um Parto Difícil

Uma recém-nascida foi admitida imediatamente na unidade de terapia intensiva neonatal (UTIN) do Massachusetts General Hospital após sofrer parada cardiorrespiratória durante o parto. Sua mãe, uma primigesta de 19 anos, teve uma gestação complicada por infecção por hepatite C, infecção por Chlamydia trachomatis tratada e hipertensão gestacional.

Ultrassonografias pré-natais realizadas entre 20 e 39 semanas de gestação mostraram dilatação do trato urinário direito, mas o coração fetal apresentava-se normal. Exatamente às 40 semanas, a bolsa amniótica rompeu-se espontaneamente, e a mãe foi internada. Traçados cardíacos fetais preocupantes levaram à realização de uma cesariana após 22 horas e 39 minutos de trabalho de parto.

Durante o parto, observou-se líquido amniótico meconial (presença das primeiras fezes do bebê no útero). A criança nasceu em posição pélvica (pés primeiro) seis minutos após a incisão uterina. Suas medidas ao nascimento foram:

  • Peso: 3575 gramas (62º percentil)
  • Comprimento: 50 cm (42º percentil)
  • Perímetro cefálico: 35,5 cm (72º percentil)

Ao nascer, a recém-nascida não apresentava esforço respiratório e tinha tônus muscular flácido. A equipe médica iniciou imediatamente medidas de suporte vital, incluindo intubação, reanimação cardiopulmonar e administração de epinefrina e soluções salinas por cateter venoso umbilical. Após 16 minutos de reanimação, a circulação espontânea retornou. Os escores de Apgar (avaliação rápida da saúde do recém-nascido) foram criticamente baixos: 1, 0, 0, 1 e 3 aos 1, 5, 10, 15 e 20 minutos, respectivamente.

A Evolução Hospitalar Desafiadora

À chegada à UTIN, a temperatura do bebê era de 34,9°C, a frequência cardíaca de 141 batimentos por minuto e a pressão arterial de 84/59 mm Hg. Ela necessitou de ventilação mecânica com saturação de oxigênio de 97%. Os médicos iniciaram hipotermia terapêutica (resfriamento controlado) para proteger seu cérebro após a privação de oxigênio durante a reanimação.

Radiografias de tórax iniciais revelaram pneumotórax pequeno a moderado no lado direito e possível aprisionamento aéreo ou pneumotórax inicial no lado esquerdo. Foi realizada toracocentese com agulha no lado direito, com remoção de 20 ml de ar. Iniciou-se antibioticoterapia empírica com ampicilina e ceftazidima.

No segundo dia, as dificuldades respiratórias aumentaram, e radiografias repetidas mostraram que o pneumotórax direito havia se resolvido, mas um grande pneumotórax esquerdo havia se desenvolvido, com colapso extenso do pulmão esquerdo. Foram drenados 27 ml de ar do lado esquerdo, o que melhorou a insuflação pulmonar.

O exame patológico da placenta revelou membranas meconiadas e evidências de corioamnionite aguda com envolvimento vascular fetal.

Nos dias seguintes, o bebê desenvolveu hipertensão pulmonar persistente do recém-nascido (HPPN), uma condição grave em que o sangue desvia dos pulmões. A diferença entre a saturação de oxigênio pré-ductal e pós-ductal variou de 5 a 15 pontos percentuais, indicando shunting sanguíneo significativo. O tratamento exigiu aumento do oxigênio para 100% e adição de óxido nítrico inalatório para relaxar os vasos sanguíneos pulmonares.

Complicações adicionais incluíram:

  • Hipotensão, exigindo reposição volêmica e múltiplas medicações (dopamina, milrinona, epinefrina)
  • Ecocardiograma mostrando persistência do canal arterial (2,9 mm), comunicação interventricular (2,0 mm) e persistência do forame oval (2,5 mm)
  • Regurgitação tricúspide com gradiente de pico de 58 mm Hg, sugerindo pressões elevadas no coração direito
  • Dilatação severa do trato urinário direito
  • Atividade convulsiva com duração de 25 minutos, tratada com fenobarbital

No 16º dia, o bebê desenvolveu febre de 38,8°C, e a radiografia de tórax mostrou nova opacidade no lobo inferior esquerdo com pequeno derrame pleural. Apesar de múltiplos esquemas antibióticos, a opacidade pulmonar persistiu até o 21º dia.

O Quebra-Cabeça Diagnóstico: Considerando Todas as Possibilidades

A equipe médica considerou sistematicamente várias condições que poderiam explicar a opacidade pulmonar persistente no mesmo local onde inicialmente havia transradiancia. Foram descartadas várias condições comuns:

Síndrome de Aspiração de Mecônio: Embora houvesse mecônio no parto e aproximadamente 5% dos lactentes com líquido meconial desenvolvam essa síndrome (sendo que 9,6% deles evoluem com pneumotórax), as anormalidades radiológicas nessa condição são tipicamente transitórias, não persistentes.

Hérnia Diafragmática Congênita: Ocorre em aproximadamente 2,4 casos por 10.000 nascidos vivos, com 80% envolvendo o lado esquerdo. No entanto, radiografias de tórax seriadas ao longo de três semanas não mostraram evidência de alças intestinais no tórax ou desvio mediastinal que sugerissem esse diagnóstico.

A equipe então focou em malformações pulmonares congênitas, considerando que as alterações persistentes no mesmo local sugeriam uma anormalidade estrutural pré-existente que se infectou. Foram avaliadas várias possibilidades específicas:

Múltiplos Cistos Broncogênicos: Tipicamente se formam no mediastino, e apenas 5% ocorrem no tecido pulmonar, geralmente nos lobos inferiores. No entanto, costumam ser detectados no pré-natal e aparecem como cistos grandes na imagem.

Hiperinsuflação Lobar Congênita: Causa superexpansão de um lobo pulmonar, mais comumente o lobo superior esquerdo, não o lobo inferior como visto nesta paciente. O grau de superexpansão também foi menos severo que o tipicamente observado nessa condição.

Malformação Congênita da Via Aérea Pulmonar (MCVAP): Esta proliferação hamartomatosa ocorre em 1 em 7500 nascidos vivos. A equipe considerou todos os cinco tipos:

  • Tipo 0 (Displasia acinar): Fatal no primeiro dia, descartado
  • Tipo 1: Tipo mais comum (mais de dois terços dos casos) com cistos grandes de até 10 cm, geralmente detectados no pré-natal
  • Tipo 2: Segundo mais comum (10-15% dos casos) com múltiplos espaços císticos de até 2,5 cm
  • Tipo 3: Massa sólida adenomatoide com pequenos cistos, geralmente detectada no pré-natal
  • Tipo 4: Cistos de vários tamanhos que podem se assemelhar a lobo superexpandido, associado a pneumotórax

Sequestro Broncopulmonar (SBP): Esta malformação congênita envolve tecido pulmonar não conectado à árvore traqueobrônquica normal, com suprimento sanguíneo tipicamente vindo diretamente da aorta. Os dois tipos são:

  • Extralobar: Encapsulado por sua própria pleura, geralmente entre o lobo inferior e o diafragma
  • Intralobar: Integrado ao tecido pulmonar normal (mais comum), geralmente no lobo inferior (98% dos casos), particularmente nos segmentos medial e posterior do lobo inferior esquerdo

A equipe médica determinou que o sequestro broncopulmonar intralobar era o diagnóstico mais provável, possivelmente como uma lesão híbrida com MCVAP. Recomendaram ultrassonografia torácica para buscar um suprimento sanguíneo aberrante da aorta a fim de confirmar o diagnóstico.

Estabelecendo o Diagnóstico Final

A ultrassonografia torácica com Doppler colorido realizada no 21º dia revelou uma massa predominantemente ecogênica no lobo inferior esquerdo com suspeita de suprimento arterial da aorta abdominal. A angiotomografia confirmatória no 23º dia mostrou uma área heterogênea de consolidação em massa no língula e lobo inferior esquerdo com uma artéria nutridora originando-se da aorta abdominal.

Isso confirmou o diagnóstico de malformação broncopulmonar, especificamente sequestro broncopulmonar intralobar. O tecido pulmonar anormal recebia seu suprimento sanguíneo diretamente da aorta em vez da artéria pulmonar, o que explicava a opacidade persistente e a evolução clínica complexa da paciente.

Tratamento e Acompanhamento em Longo Prazo

A paciente foi avaliada pela cirurgia pediátrica, mas o tratamento cirúrgico definitivo da malformação broncopulmonar congênita foi adiado para o ambiente ambulatorial. Dadas suas múltiplas anomalias congênitas, ela passou por avaliação genética, incluindo:

  • Microarray cromossômico: Nenhuma anormalidade detectada
  • Teste para mutação DICER1: Negativo (importante porque essa mutação está associada a 40% dos casos de blastoma pleuropulmonar e confere risco de câncer)

Sua febre eventualmente resolveu, e ela foi gradualmente desmamada do suporte ventilatório e da sedação. Iniciou alimentação por via oral e continuou sob cuidado de uma equipe multidisciplinar, incluindo especialistas em pneumologia, cirurgia, nefrologia e urologia.

A angiotomografia de acompanhamento no 149º dia mostrou que a área anterior de consolidação havia sido substituída por hipertransradiancia, sugerindo alterações císticas e aprisionamento aéreo. O suprimento arterial aberrante da aorta abdominal permaneceu presente, mas era menos conspícuo. A imagem também mostrou a dilatação renal direita conhecida, agora status pós-pieloplastia.

O Que Isso Significa para Pacientes e Famílias

Este caso ilustra vários pontos clínicos importantes para famílias que enfrentam condições neonatais complexas:

Persistência de Sintomas: Quando anormalidades pulmonares persistem apesar do tratamento apropriado, malformações congênitas devem ser consideradas. O mesmo local anatômico mostrando diferentes anormalidades ao longo do tempo (transradiancia seguida por opacidade) sugere especialmente um problema estrutural subjacente.

Avaliação Abrangente: Recém-nascidos com múltiplas anomalias congênitas beneficiam-se de avaliação completa por múltiplos especialistas. Esta paciente necessitou cuidado de equipes de neonatologia, cardiologia, neurologia, nefrologia, cirurgia e genética.

Considerações Genéticas: Embora a maioria das malformações broncopulmonares ocorra esporadicamente, algumas (particularmente MCVAP tipo 4) podem estar associadas a mutações genéticas como DICER1, que conferem risco de câncer. Aconselhamento genético apropriado e testes são importantes.

Momento da Intervenção: O tratamento cirúrgico do sequestro broncopulmonar é tipicamente eletivo em vez de emergencial. O momento depende do estado clínico do paciente, do tamanho da lesão e da presença de complicações.

Acompanhamento em Longo Prazo: Pacientes com malformações pulmonares congênitas requerem monitoramento contínuo para potenciais complicações, incluindo infecções recorrentes, sangramento e, muito raramente, transformação maligna.

Este caso demonstra como técnicas avançadas de imagem como a angiotomografia podem identificar precisamente a anatomia vascular anormal, permitindo diagnóstico preciso e planejamento de tratamento adequado para condições congênitas complexas.

Informações da Fonte

Título do Artigo Original: Caso 35-2024: Um Recém-Nascido com Hipoxemia e Opacidade Pulmonar

Autores: T. Bernard Kinane, M.D., Evan J. Zucker, M.D., Katherine A. Sparger, M.D., Cassandra M. Kelleher, M.D., e Angela R. Shih, M.D.

Publicação: The New England Journal of Medicine, 14 de novembro de 2024;391:1838-46

DOI: 10.1056/NEJMcpc2402487

Este artigo voltado para pacientes é baseado em pesquisas revisadas por pares dos registros de casos do Massachusetts General Hospital.